> CRIATIVIDADE: <strong>Há professores ideais?</strong>

CRIATIVIDADE

domingo, maio 24, 2009

Há professores ideais?

Há professores ideais?

POR ELMANO MADAIL
O Sistema de Ensino tornou ao centro das preocupações nacionais, levantando questões sobre a qualidade dos docentes da escolaridade obrigatória. E se todos tiveram pelo menosum na vida, qual será o professor ideal?

O Ensino Básico em Portugal, escolaridade obrigatória que compreende um período entre os 1.º e o 9.º anos - embora tenha sido já ventilada, por responsáveis governamentais, a hipótese de ser ampliado por mais três anos lectivos - observou uma semana fértil em acontecimentos. O mais mobilizador ocorreu na segunda-feira, com a prova de aferição a Língua Portuguesa, realizada por mais de 230 mil alunos dos 4.º e 6.º anos, que foram confrontados com o primeiro grande teste de muitos que farão ao longo do percurso escolar. O segundo aconteceu dois dias depois, com a prova de aferição a Matemática. Sucede, porém, que tais provas não se destinam a fornecer elementos contabilizáveis para a nota final do aluno, mas antes a avaliar se as matérias estão a ser apreendidas e a melhorar os resultados escolares, servindo para uma reflexão individual e colectiva sobre as práticas de ensino, segundo o Ministério da Educação. Em última análise, tais provas, introduzidas em 1999 e cuja realização, este ano, envolveu cerca de 6800 escolas e mais de 8000 professores, servem também para avaliar da qualidade dos docentes do Ensino Básico (EB).

E aquela voltou a ser questionada, não raro com pouco discernimento e muita demagogia, a propósito de um episódio menor e irrelevante para o sistema educativo nacional, mas que a circunstância de ter sido gravado e difundido na televisão projectou a uma escala desproporcionada: uma professora da Escola Básica 2,3 Sá Couto, de Espinho, teria feito alusões a orgias sexuais durante uma aula de História ao 7.º ano que foi registada em áudio por uma educanda. Além de tecer considerações sobre a alegada perda de virgindade de uma aluna e os sonhos "molhados" dos rapazes, Joaquina Rocha afirmou-se superior aos encarregados de educação que se tinham queixado dela à direcção da escola por ter mais habilitações académicas. Bizarro.

Docência no Ensino Básico não se pode limitar à correcta administração de conteúdos, mas tem de observar os contextosdos alunos em função do carácter obrigatório da escolaridade.

Embora deplorável, sem dúvida, mas inconsequente também - não fora a omnipresença invasora das tecnologias de comunicação - a situação (nada inédita, como sabe quem frequentou o ensino público e não padeça de amnésia selectiva) levou a questionar, outra vez, a qualidade da classe docente. A qual, aliás, ameaça prolongar a sua luta até ao final do ano lectivo, senão até ao início do próximo, contra o processo de avaliação de que será objecto. Tratando-se de profissão fulcral ao progresso da sociedade, e das mais marcantes no desenvolvimento do indivíduo, o seu exercício é, porém, complexo e sob escrutínio público permanente, como é raro acontecer noutros mesteres. E, se a escola é obrigatória, importa aferir o perfil do professor do Ensino Básico (EB) ideal e as características o constituem. E, já agora, questionar se ele poderá, alguma vez, existir para lá da fantasia de cada qual.

Os especialistas recusam, taxativos, qualquer modelo de professor ideal, considerando tal ensejo negativo em si mesmo: "O professor ideal não existe, em termos práticos, por se tratar de uma profissão complicadíssima, na medida em que põe em jogo, muito mais do que as profissões técnicas, a personalidade das pessoas. Assim, a própria ideia de que existe um professor ideal é altamente negativa", considera Amélia Lopes, da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto (UP).

Se um ideal partilhado universalmente é impossível de realizar - quanto mais não seja pela condição humana da docência -, há características, porém, que auguram ao professor do EB melhor desempenho. Para José augusto Pacheco, director do Centro de Investigação em Educação (CIED) da Universidade do Minho, "é fundamental que seja competente no domínio cientifico-pedagógico da sua área de leccionação; mas deverá possuir, também e sobretudo, grande sensibilidade para os problemas e os contextos dos alunos - social, económico, familiar, etc… - em função do carácter obrigatório do EB", diz.

Será essa condição, aliás, que distingue a complexidade do exercício da profissão do professor do EB em relação aos pares do Secundário e Superior, realça, e que acaba por comportar, segundo Amélia Lopes, uma ética muito própria. Por um lado, porque a docência do EB "visa o desenvolvimento de todos os alunos ao mesmo tempo, independentemente das suas origens diversas"; por outro, porque esse desenvolvimento não passa só pelo saber escolástico, mas também pelas emoções, pela convivialidade, pela cidadania. De modo que "hoje, um professor do EB não se pode definir só como 'historiador' ou 'matemático'", sustenta a investigadora da UP; ele será, outrossim, "um professor de História ou de Matemática, porque além da competência nessas áreas do saber, terá ainda de ter um conhecimento profundo do Mundo e da natureza humana", afirma.

É que, se há 10 ou 20 anos se julgava poder prescindir dos professores para a formação global do aluno, "hoje concluiu-se que, pelo contrário, são cada vez mais importantes nesse âmbito", pelo que "o bom professor deverá ser pessoa de Cultura e de Mundo, porque a educação básica não se cinge à instrução, tem de se articular com outras dimensões do humano".

Adalberto Dias de Carvalho, docente de Filosofia da Educação da Faculdade de Letras da UP, perfilha da tese. Centrando a sua análise da prestação do professorado nas referências herdadas pelo aluno do EB, advoga que "o bom professor é alguém com empatia pessoal, isto é, capaz de levar à adesão dos alunos - crianças e pré-adolescentes, no caso. Com a massificação do ensino, muitas delas padecem da ausência de figuras parentais fortes", o que implica obrigações da docência muito para lá do mero administrar de conhecimento: "Se, numa primeira fase, as crianças são heterónomas e precisam de quem cuide delas, na puberdade tentam ser autónomas, e precisam de pessoas a quem se possam opor mas gostando delas. Frágeis por natureza, precisam de segurança, e essa vem do afecto e da liderança, cuja combinação resulta na empatia", explica o também coordenador do Observatório dos Recursos Educativos.

Alcançar tal empatia sem que, desse processo, resultem danos será o que define, na óptica de Dias de Carvalho, o bom professor, aquele capaz de estabelecer uma "distância óptima" com os alunos. A qual passa por "responder à necessidade de afecto do aluno sem lhe criar uma dependência afectiva nem perder a autoridade", diz, sublinhando que nessa equação radica o extraordinário da docência no EB: "A realização suprema do professor é conseguir que o aluno não precise mais dele, tornando-o autónomo, mas que ao mesmo tempo o conserve como referência".

Os professores objecto de crítica resultam muito das mudanças operadas na carreira com a massificação do ensino, para benefício, mas também prejuízo, da docência. Até 1973 e à sanha reformista de Veiga Simão, no Governo terminal de Marcello Caetano, os docentes provinham das elites e lidavam com alunos de origem similar, proporcionando a partilha de valores e símbolos na sala de aula; depois, com Veiga Simão, assistiu-se, "mais do que a uma democratização, a um processo de 'demografização' da escola", segundo Dias de Carvalho, em que se os professores eram os mesmos, os alunos passaram a ser de grupos sociais mais alargados, com a escola a tentar incutir-lhes os valores anteriores.

Ora, os professores contemporâneos, fruto da renovação da classe acentuada nos anos de 1980 e ainda em curso, "são já aqueles que beneficiaram da 'demografização', oriundos de grupos que, sem a massificação, não teriam acesso à escola", nota Dias de Carvalho, assinalando a coexistência de dois tipos de professor na escola actual: "Os que continuam a agir segundo as referências pedagógicas clássicas e os que, tendo ascendido à profissão, mantêm ainda forte ligação ao grupo de origem, tendencialmente menos favorecido, partilhando, portanto, a origem social com a maioria dos alunos".

E se é verdade que daqui derivam vantagens óbvias, como "a maior capacidade de compreensão dos novos alunos, por partilharem linguagens, valores e referências", resultam também prejuízos grandes, designadamente a forte probabilidade de "muitos desses professores produto da massificação não terem as competências ideais para o exercício da profissão, tanto culturais como científicas - até porque as próprias universidades baixaram os níveis de exigência", cogita o analista.

Mas não só. A partilha das origens sociais também eclipsou a imagem do velho mestre-escola, severo e distanciado. Hoje, isso já não seria possível porque, segundo Augusto Pacheco, " quando as crianças chegam ao EB, têm já uma experiência prévia com a instituição escolar", dessacralizando a sala de aula e impondo novos constrangimentos: "Dantes, era uma ilha de difícil acesso e, além disso, a escola tinha as suas próprias metas, não havia grande compromisso dos professores com o sucesso dos alunos. Mas, a partir dos anos de 1990, incrementou-se essa preocupação da EB, e hoje esse professor não pode reter o aluno sem que, primeiro, tenha implementado medidas de diferenciação pedagógica. Isto é uma mudança profunda", diz o director do CIED. "Hoje, o professor está muito mais exposto".

Essa transparência virtual leva a renovadas obrigações. Que não serão exclusivas dos professores, todavia. "Com a ideia de projecto educativo, não só o espaço e o tempo de aula se abriram à comunidade, como os alunos contam aos pais o que se passa na sala e eles tendem a intervir, o que não acontecia antigamente. Ora, como a gestão de um espaço aberto é mais complexa, exige pessoas mais cultas", alerta Dias de Carvalho. "Mas também exige pais mais cultos, porque quando intervêm na escola, terão de ter competência para o fazer: senão, pode acontecer que critiquem uma intervenção pedagógica que, sendo correcta, colida com as suas superstições, mitos e erros de percepção".

Mais atentos estão também outros actores, suscitando formas de escrutínio inéditas que contribuem pressionar os docentes do EB. Se a de pais e media já existia, "hoje o escrutínio é também político, económico e governamental, e tem por novidade a imposição clara de uma única forma de ser professor", refere Amélia Lopes, "sujeita à avaliação com base nos resultados". Sucede, porém, que esses resultados são estatísticas, "números facilmente manipuláveis e que não têm em conta os contextos nem os processos, pelo que se pode ter bons resultados a que não correspondem boas aprendizagens", critica.

Assim, face à complexidade crescente de uma profissão cada vez mais exposta e escrutinada, em mudança profunda e acelerada, Amélia Lopes concede que em Portugal concorrem as duas situações - profissionais adequados ao perfil do bom professor e outros que ainda não. Mas embora o facto de partilhar este ideal de professor não signifique que ele consiga ser assim todos os dias, o importante é que ele tenha esse objectivo em mente". Porque se o professor ideal não existe, nem é desejável que se procure fabricá-lo, é imperioso que se persiga essa meta.

Fonte: JN